A Maçã de Magritte

A partir da ausência de um degrau, que dá acesso ao consultório do terapeuta, descrita desde o início, estabelece-se a estrutura da história. Como marcador simbólico – evocado frequentemente entre tantos outros –, atravessa todo o livro, numa tentativa de dimensionar a angústia deste personagem-narrador; angústia (em parte causada pela pandemia) que avança e retrocede mediante situações que permeiam seu cotidiano e caracterizam seu subjetivismo, desconcertante e perturbador. O autor, ao não temer mandá-lo para o divã, acertou o tom narrativo, pois talvez só assim possa dar conta de seus desmoronamentos psíquicos e dos desdobramentos desses últimos anos.

“Depois da pandemia as ruas se enterravam sem cuidado numa realidade que não tinha nada de nova; as pessoas, sedimentadas pela irregularidade de uma suposta paz, a paz de não precisarem mais das máscaras, que granulavam o fôlego, como um fenômeno sem precedência, apenas caminhavam sorrindo umas para as outras. Não era o sorriso de quem via a morte se distanciar, o perigo se tornar resíduo de um medo esfarrapado. Nada disso, sorriam porque sentiam que as máscaras arrolhavam seus egos.
Ver essa gente agora, sem máscara, é como não reconhecer certa humanidade com que tive de conviver durante esses anos. Prefiro os amantes de Magritte, submersos nos panos cerimoniais que cobrem seus rostos. Os panos que tampam esses personagens fundem sob os mistérios de cada um o acordo firmado de não ser necessário ver o que só a vontade meridional é capaz de entender.” (Trecho do livro)